"(...) Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos
casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria,
maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi
trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa
beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é
para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode.
Tanto faz. é uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar,
para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho
de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.
A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um
destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada
um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um
estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a
desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não
larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é
necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e
sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode
matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num
momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por
muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração
guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida,
quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso
amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não
se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver
sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode
ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida
dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida
inteira. E valê-la também."
Texto integral de Miguel Esteves Cardoso in http://obviousmag.org/archives/2007/08/um_elogio_ao_am.html#ixzz2qf9YRz4E
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