"(...) O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se
apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já
ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá
jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e
não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por
causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e
das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos
pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha
entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser
combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas,
tomam decisões. O amor transformou-se numa variante
psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser
desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão
prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de
verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido,
do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de
conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como
os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo
de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta
do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos,
banancides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade
sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença
que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao
mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser
uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a
pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da
tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental" (...)
Texto integral de Miguel Esteves Cardoso in http://obviousmag.org/archives/2007/08/um_elogio_ao_am.html#ixzz2qf90x6FP
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